sexta-feira, 17 de julho de 2015

Proteção ambiental é sustentabilidade. O planeta agradece.

Projetos de parques lineares em Piracicaba, Goiânia e em Medellín mostram as apostas na recuperação das margens dos rios urbanos
Por Mariana Siqueira

Edição 256 - Julho/2015


este texto foi retirado da revisa Arquitetura. Ele diz tudo sobre nossa crença relativa ao meio ambiente das cidades. Sua autora e suas ideias iluminam as relações do homem e o meio urbana. somos sapiens, nossa obrigação é agradecer e preservar.




O homo sapiens é uma espécie relativamente jovem, se comparado a outras formas de vida que habitam o planeta. Deslumbrados com o poder de transformar a natureza, esta espécie cria maravilhas e comete muitos erros. Nada poderia representar melhor essa dicotomia que a maior das obras humanas: as cidades. Especialmente, na forma como se relacionam com a fonte de toda a vida: as águas.
Historicamente, a humanidade busca a presença da água para viver. Foi às margens de rios e mares que surgiu a maior parte de nossas cidades. Mas já na Idade Média essa relação passou a ser conflituosa: o aumento demográfico levou à contaminação dos cursos d'água urbanos, que passaram a ser vistos como locais a serem evitados. Com a Revolução Industrial, a poluição das águas tornou-se um problema ainda mais sério, já que as indústrias foram, muitas vezes, instaladas nos fundos de vales, conectadas a ferrovias implantadas nos leitos dos rios. No século 20, o automóvel levou à construção de rodovias urbanas, mais uma vez, às suas margens. Mas poluição e barreiras físicas não são as únicas questões: "O mais grave de todos os problemas, quando falamos da relação entre cidades e rios, é a visão mercantilista do solo urbano. (...) os leitos maiores de todos os rios hoje urbanos foram invadidos, loteados e vendidos", conta Alexandre Delijaicov, arquiteto e professor da FAUUSP, em entrevista a AU (AU 234).

Hoje, o desrespeito aos princípios que regem o funcionamento de uma bacia hidrográfica manifesta-se de muitas formas: excessiva impermeabilização do solo, destruição das áreas verdes e matas ciliares, construções nos leitos dos cursos d'água, alterações de suas condições hidrológicas e morfológicas - como canalizações e tamponamentos -, crescente poluição ambiental. Um dos resultados já nos é bem conhecido: enchentes nas épocas chuvosas (ainda que alterados ou escondidos, os cursos d'água continuam compondo macrossistemas de drenagem). Outro resultado, por paradoxal que possa soar, é a escassez de água, realidade que assombra crescentes parcelas da população mundial mesmo em regiões naturalmente abundantes no recurso, como a região Sudeste brasileira e, notavelmente, o Estado de São Paulo.

PARQUES LINEARES PELO MUNDO
Crises são oportunidades e, em todo o mundo, florescem projetos que visam a devolver certa dignidade aos rios urbanos. Parques lineares ganham destaque, nesse contexto, como uma das estratégias para manter ou criar corredores verdes nas bordas d'água. Esses parques ajudam a estruturar a rede de espaços livres de uma cidade, gerando conectividade para pessoas e animais; requalificam a paisagem urbana, criando o endereço ideal para equipamentos sociais, culturais, esportivos e recreativos; previnem a construção de ocupações irregulares; podem assegurar ou aumentar a relação de áreas permeáveis dentro do perímetro urbano; melhoram o microclima e a qualidade do ar.
Aos poucos, somam-se exemplos de projetos ao redor do mundo. Para além dos clássicos Rio Cheonggyecheon, em Seul (AU 234), na Coreia do Sul, e rio Don, em Toronto, no Canadá, vemos como, em Cingapura, a capacidade do rio Kallang foi aumentada não pela canalização, mas pelo movimento inverso: seu leito artificial de concreto foi demolido e seus meandros foram recriados dentro de um dos maiores parques da ilha, o Bishan-Ang Mo Kio. Em Lyon, na França, como em outras cidades europeias, estruturas obsoletas relacionadas ao boom rodoviário do século 20 dão lugar a praças e parques (AU 234). Em Madri, capital espanhola, rodovias marginais foram enterradas em túneis, liberando o térreo para a criação de um parque linear de cerca de 6 km de extensão (AU 212).
Felizmente, a América Latina também vive esse despertar. A paulista Piracicaba saiu na frente, graças a demandas de seus moradores que, desde a década de 1970, manifestam em praça pública o desejo de usufruir livremente seu rio. Goiânia, uma das cidades brasileiras com maior índice de área verde por habitante (94 m²/ hab), está em fase de implantação daquele que deve vir a ser o maior parque linear do continente, planejado ao longo de um córrego e um ribeirão. Medellín, na Colômbia, segue como inspiração para urbanistas que trabalham em países em desenvolvimento e elabora o plano de um audacioso corredor biótico de envergadura metropolitana ao longo de seu rio.

PIRACICABA, SP

Piracicaba pode ser considerada um caso exemplar de cidade brasileira que não deu as costas ao rio. Usos tradicionais, como recreação e contemplação, são registrados desde o século 19, na forma de banhos, atividades esportivas, passeios e festividades. A paulatina poluição das águas afastou muitas atrações, mas a presença simbólica do rio manteve-se viva no imaginário da população que, no fim da década de 1970, saiu às ruas para protestar por sua recuperação.
Desde então, diferentes gestões administrativas têm logrado manter o foco em projetos e iniciativas que visam a recuperar o rio de alguma forma. Pronto identificaram- se duas linhas de atuação: melhorar a qualidade da água e criar espaços públicos às suas margens.
As primeiras medidas para despoluir o rio foram tomadas em âmbito local, como a inauguração de uma Estação de Tratamento de Água. Mas como o rio Piracicaba já chegava poluído à cidade, foi preciso unir forças com outras municipalidades da bacia hidrográfica para, a partir de um planejamento regional, regular o uso das águas e promover condições necessárias de saneamento. Assim, foi criado, na década de 1980, o Consórcio Intermunicipal dos rios Piracicaba, Jundiaí e Capivari, que acabou se tornando uma referência para a implantação da política de recursos hídricos do Estado de São Paulo.
Ao mesmo tempo, foram pensados usos e tratamentos adequados para os espaços verdes do entorno ribeirinho, a começar por uma área de mais de 200 mil m² que havia sido desapropriada pela prefeitura anos antes. Uma das decisões mais relevantes foi fazer, em um dos trechos, a continuação da avenida marginal afastada do leito do rio, o que criou uma nova lógica de apropriação daquele espaço, onde pedestres ganharam protagonismo. Com o passar dos anos, a região recebeu projetos como o Parque da Rua do Porto e até uma garagem de barcos para propiciar práticas esportivas e recreativas junto ao lago existente. Na outra margem, o Engenho Central foi tombado em 1989 e, em 1992, foi inaugurada a Ponte Pênsil para conectar os dois lados.
Em 2001 foi criado o Projeto Beira-Rio, um programa de requalificação ambiental e urbanística com foco na relação rio/cidade. A partir de um profundo diagnóstico, foram desenvolvidas três etapas de trabalho entre 2003 e 2012 que geraram intervenções em toda a orla esquerda do Piracicaba compreendida entre a Rua do Porto e a Ponte do Mirante - conjunto que passou a ser conhecido como Parque Beira-Rio. Para completar, em 2014 houve um concurso de projetos de arquitetura para revitalização do Parque do Mirante, celebrando o primeiro dos parques implantados na cidade (vencido pelo Grupo Garoa).
Agora, a cidade passa por mais um momento de fortalecimento de sua relação com o rio, com um Plano Diretor para o território da Orla Fluvial do Rio Piracicaba no trecho central da cidade. O trabalho, conduzido pelo escritório Stuchi & Leite Projetos, visa a estabelecer um sistema integrado e coeso de parques lineares com a inserção de novos programas e equipamentos nos parques existentes, além da requalificação do Parque do Trabalhador e da conquista de um novo parque, no trecho da Nova Avenida Renato Wagner.
Entre as ações estratégicas previstas no Plano Diretor, destaca-se a inserção, ao longo de todo o trecho de orla em questão, de programas públicos (lazer, decks, ginástica, esportes), equipamentos públicos (sanitários), totens de bases policiais e informações turísticas, módulos de programas comerciais (alimentação), equipamentos de porte (Engenho, Aquário, Planetário, Teatro, Boys renovada, Museus) e áreas potenciais junto à iniciativa privada, através PPPs.
O novo parque junto à Nova Avenida Renato Wagner foi projetado para aproximar ainda mais cidadãos e águas: deques de madeira e pistas de caminhada e ciclismo complementam o desenho de duas praças em meio ao bosque, a Praça das Águas e a Topologias Lúdicas. A avenida existente será reconfigurada: em seu leito carroçável mais próximo ao rio, carros darão lugar a calçadões e ciclovias; na caixa viária restante, será privilegiado o transporte público. As calçadas lindeiras serão aumentadas e todos os pisos propostos serão permeáveis, uma forma de assegurar a desejável microdrenagem. Todo o térreo do Lar dos Velhinhos será ativado com programas comerciais, acompanhando o instrumento urbanístico previsto em Planos Diretores de várias cidades, inclusive no de Piracicaba, revisto em 2013.

GOIÂNIA, GO

Se Goiânia detém, merecidamente, o título de cidade mais verde do País, por contar com o maior número de árvores plantadas em vias públicas (950 mil) e a incrível marca de 94 m² de área verde por habitante (quase oito vezes mais do que o mínimo recomendado pela ONU), ela está longe de ser considerada uma cidade azul. Isso porque os 85 cursos d'água presentes dentro de seu perímetro estão contaminados e apresentam disfunções em relação à qualidade da água e às características hidrológicas e morfológicas de seu leito e sua várzea.
Um ambicioso projeto pretende ajudar a reverter esse quadro de maneira definitiva. Trata-se do Programa Urbano Ambiental Macambira Anicuns (Puama), criado em 2003 para recuperar a microbacia Macambira Anicuns, que drena 70% da área urbana de Goiânia e deságua no Rio Meia Ponte, responsável por grande parte do abastecimento hídrico da cidade.
O Programa conta com um parque linear de 26,5 km de extensão que, quando concluído, deverá ser o maior parque linear do Brasil e, talvez, da América do Sul, além de dois parques ambientais urbanos que visam à recuperação e proteção do sistema fluvial. O trabalho foi desenvolvido a várias mãos pelo Consórcio Reencontro com as Águas, composto por Rosa Grena Kliass, Barbieri Gorski, GrupoQuatro, Basitec e Hidroconsult.
Os parques preservam a vegetação existente e propõem extensas áreas de recomposição arbórea, e têm seu perímetro demarcado por um par de vias paralelas para pedestres e ciclistas - um dos maiores desafios de implantação está, de fato, na consolidação do perímetro, já que ela depende de desapropriações e remoções de edificações construídas por moradores de variados estratos sociais.
Nos espaços fora das Áreas de Preservação Permanente (APP) - faixas de 30 m ao longo das margens dos cursos d'água e de 100 m ao redor das nascentes - foram projetados Parques de Vizinhança, Núcleos Socioambientais e uma infinidade de núcleos de estar com equipamentos públicos. Além dos parques, estão previstos projetos de infraestrutura de drenagem, transposição dos corpos d'água e melhoria de leitos carroçáveis, além de regularização do uso do solo e soluções habitacionais adequadas.
Estão em obras o Parque Ambiental Urbano Macambira, que abriga as nascentes do córrego de mesmo nome, e o primeiro dos 11 setores que compõe o parque linear - ambos devem ser entregues este ano.

MEDELLÍN, COLÔMBIA

A colombiana Medellín reafirma seu pioneirismo em questões urbanas na América Latina ao se comprometer com a recuperação de seu caudaloso rio. O projeto, do Latitud Taller de Arquitectura y Ciudad, foi selecionado em um concurso internacional e deve integrar a cidade a seu âmbito fluvial, além de consolidar um corredor biótico de envergadura metropolitana na forma de um parque ambiental, cultural e esportivo.
Medellín fica entre duas cadeias de montanhas paralelas e seu rio acompanha a conformação do vale como um eixo de simetria quase perfeito - curiosamente, até o número de pessoas que vive de cada lado é parecido, cerca de 1,2 milhão. Há décadas, foi construída uma rodovia nacional que cruza a cidade ocupando justamente as duas margens do rio; todas as pontes instaladas foram destinadas a veículos e poucos são os pedestres que se aventuram a atravessá-las. O resultado é uma barreira física e psicológica que divide Medellín, literalmente, em duas porções, leste e oeste.
O projeto para o Parque do Río Medellín é uma síntese de questões referentes à ecologia, mobilidade e urbanidade. Com 17 km, deve estruturar a rede de áreas verdes da cidade e incrementar a hoje baixa oferta de espaços públicos na metrópole. O elaborado plano de plantio de espécies nativas foi organizado em trechos que respondem às especificidades dos 52 afluentes que deságuam no rio dentro do perímetro urbano, originando um potente corredor verde. Assim, o rio Medellín irá criar condições de conectividade para o tecido biótico do vale, articulando zonas de vegetação como as montanhas, os córregos, o Jardim Botânico, as universidades e demais vazios urbanos.
As rodovias existentes serão mantidas e até ampliadas, mas enterradas em pequenos trechos que, somados, devem chegar a 6 km. A ideia é aproveitar esses espaços para costurar, em nível, os dois lados da cidade, instaurando a mobilidade para pedestres e ciclistas - ao longo do restante do rio, serão criadas passarelas para esses mesmos usuários. O uso do transporte público será incentivado e estão previstas duas novas estações de metrô.
Finalmente, o parque traz a oportunidade de tecer uma rede de espaços públicos que ajude a construir uma forte unidade territorial. Uma via de pedestres deverá percorrer todo o eixo fluvial, conectando novas áreas de encontro e permanência dispostas ao longo do rio.
O Parque do Rio Medellín, com sua ambiciosa missão, será construído em etapas, associando capital público e privado, até 2050. O projeto piloto abarca 700 m em uma margem e 1.000 m na outra e já estão em obras no bairro residencial Conquistadores.

POLÍTICA E SOCIEDADE CIVIL

Os projetos de parques lineares em Piracicaba, Goiânia e Medellín mostram a importância do pensamento sistêmico na abordagem de rios e cursos d'água. Não basta olhar apenas para dentro do perímetro de intervenção direta de um parque fluvial: é preciso compreender a bacia ou a microbacia hidrográfica em que se insere como um todo, levando em conta não apenas o sistema de drenagem, mas fatores ambientais, culturais, sociais, políticos e econômicos.
Os projetos revelam, ainda, grande cuidado no tocante à inserção urbana, criando impactos positivos que vão desde a escala regional e metropolitana até aquela dos bairros adjacentes. Corredores verdes, equipamentos, espaços públicos e travessias para pedestres e ciclistas são conceitos-chave em todos eles.
Piracicaba, Goiânia e Medellín não poderiam descortinar um futuro mais verde não fossem gestos de grande força política. Além de representantes esclarecidos e corajosos, é preciso comprometimento de órgãos públicos para manter o foco nos projetos independentemente de questões partidárias. Por fim, os novos parques lembram que reivindicações populares podem e devem funcionar. É hora de trazermos de volta o verde a este planeta azul.
MARIANA DE MELO SIQUEIRA é arquiteta urbanista paisagista formada pela FAUUSP e tem sua trajetória profissional marcada por três parques: Parque Madrid Río, que ajudou a desenhar durante os anos em que trabalhou para o escritório holandês West 8; Parque Macambira Anicuns, quando atuou como coordenadora para o projeto de Rosa Kliass e Barbieri+Gorski; e Parque Bernardo Sayão, cujo projeto básico acaba de sair da prancheta na capital federal, em uma parceria com a Escola de Paisagismo de Brasília

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