Projetos de parques lineares em Piracicaba, Goiânia
e em Medellín mostram as apostas na recuperação das margens dos rios urbanos
Por Mariana
Siqueira
Edição 256 - Julho/2015
este texto foi retirado da revisa Arquitetura. Ele diz tudo sobre nossa crença relativa ao meio ambiente das cidades. Sua autora e suas ideias iluminam as relações do homem e o meio urbana. somos sapiens, nossa obrigação é agradecer e preservar.
O homo sapiens é uma espécie relativamente jovem, se comparado a outras
formas de vida que habitam o planeta. Deslumbrados com o poder de transformar a
natureza, esta espécie cria maravilhas e comete muitos erros. Nada poderia
representar melhor essa dicotomia que a maior das obras humanas: as cidades.
Especialmente, na forma como se relacionam com a fonte de toda a vida: as
águas.
Historicamente, a humanidade busca a presença da água para viver. Foi às
margens de rios e mares que surgiu a maior parte de nossas cidades. Mas já na
Idade Média essa relação passou a ser conflituosa: o aumento demográfico levou
à contaminação dos cursos d'água urbanos, que passaram a ser vistos como locais
a serem evitados. Com a Revolução Industrial, a poluição das águas tornou-se um
problema ainda mais sério, já que as indústrias foram, muitas vezes, instaladas
nos fundos de vales, conectadas a ferrovias implantadas nos leitos dos rios. No
século 20, o automóvel levou à construção de rodovias urbanas, mais uma vez, às
suas margens. Mas poluição e barreiras físicas não são as únicas questões:
"O mais grave de todos os problemas, quando falamos da relação entre
cidades e rios, é a visão mercantilista do solo urbano. (...) os leitos maiores
de todos os rios hoje urbanos foram invadidos, loteados e vendidos", conta
Alexandre Delijaicov, arquiteto e professor da FAUUSP, em entrevista a AU (AU 234).
Hoje, o desrespeito aos princípios que regem o funcionamento de uma
bacia hidrográfica manifesta-se de muitas formas: excessiva impermeabilização
do solo, destruição das áreas verdes e matas ciliares, construções nos leitos
dos cursos d'água, alterações de suas condições hidrológicas e morfológicas -
como canalizações e tamponamentos -, crescente poluição ambiental. Um dos resultados
já nos é bem conhecido: enchentes nas épocas chuvosas (ainda que alterados ou
escondidos, os cursos d'água continuam compondo macrossistemas de drenagem).
Outro resultado, por paradoxal que possa soar, é a escassez de água, realidade
que assombra crescentes parcelas da população mundial mesmo em regiões
naturalmente abundantes no recurso, como a região Sudeste brasileira e,
notavelmente, o Estado de São Paulo.
PARQUES LINEARES
PELO MUNDO
Crises são oportunidades e, em todo o mundo, florescem projetos que
visam a devolver certa dignidade aos rios urbanos. Parques lineares ganham
destaque, nesse contexto, como uma das estratégias para manter ou criar
corredores verdes nas bordas d'água. Esses parques ajudam a estruturar a rede
de espaços livres de uma cidade, gerando conectividade para pessoas e animais;
requalificam a paisagem urbana, criando o endereço ideal para equipamentos sociais,
culturais, esportivos e recreativos; previnem a construção de ocupações
irregulares; podem assegurar ou aumentar a relação de áreas permeáveis dentro
do perímetro urbano; melhoram o microclima e a qualidade do ar.
Aos poucos, somam-se exemplos de projetos ao redor do mundo. Para além
dos clássicos Rio Cheonggyecheon, em Seul (AU 234), na Coreia do
Sul, e rio Don, em Toronto, no Canadá, vemos como, em Cingapura, a capacidade
do rio Kallang foi aumentada não pela canalização, mas pelo movimento inverso:
seu leito artificial de concreto foi demolido e seus meandros foram recriados
dentro de um dos maiores parques da ilha, o Bishan-Ang Mo Kio. Em Lyon, na
França, como em outras cidades europeias, estruturas obsoletas relacionadas ao
boom rodoviário do século 20 dão lugar a praças e parques (AU 234).
Em Madri, capital espanhola, rodovias marginais foram enterradas em túneis, liberando
o térreo para a criação de um parque linear de cerca de 6 km de extensão (AU 212).
Felizmente, a América Latina também vive esse despertar. A paulista
Piracicaba saiu na frente, graças a demandas de seus moradores que, desde a
década de 1970, manifestam em praça pública o desejo de usufruir livremente seu
rio. Goiânia, uma das cidades brasileiras com maior índice de área verde por
habitante (94 m²/ hab), está em fase de implantação daquele que deve vir a ser
o maior parque linear do continente, planejado ao longo de um córrego e um
ribeirão. Medellín, na Colômbia, segue como inspiração para urbanistas que
trabalham em países em desenvolvimento e elabora o plano de um audacioso
corredor biótico de envergadura metropolitana ao longo de seu rio.
PIRACICABA, SP
Piracicaba pode ser considerada um caso exemplar de cidade brasileira
que não deu as costas ao rio. Usos tradicionais, como recreação e contemplação,
são registrados desde o século 19, na forma de banhos, atividades esportivas,
passeios e festividades. A paulatina poluição das águas afastou muitas
atrações, mas a presença simbólica do rio manteve-se viva no imaginário da
população que, no fim da década de 1970, saiu às ruas para protestar por sua
recuperação.
Desde então, diferentes gestões administrativas têm logrado manter o
foco em projetos e iniciativas que visam a recuperar o rio de alguma forma.
Pronto identificaram- se duas linhas de atuação: melhorar a qualidade da água e
criar espaços públicos às suas margens.
As primeiras medidas para despoluir o rio foram tomadas em âmbito local,
como a inauguração de uma Estação de Tratamento de Água. Mas como o rio
Piracicaba já chegava poluído à cidade, foi preciso unir forças com outras
municipalidades da bacia hidrográfica para, a partir de um planejamento
regional, regular o uso das águas e promover condições necessárias de
saneamento. Assim, foi criado, na década de 1980, o Consórcio Intermunicipal
dos rios Piracicaba, Jundiaí e Capivari, que acabou se tornando uma referência
para a implantação da política de recursos hídricos do Estado de São Paulo.
Ao mesmo tempo, foram pensados usos e tratamentos adequados para os
espaços verdes do entorno ribeirinho, a começar por uma área de mais de 200 mil
m² que havia sido desapropriada pela prefeitura anos antes. Uma das decisões
mais relevantes foi fazer, em um dos trechos, a continuação da avenida marginal
afastada do leito do rio, o que criou uma nova lógica de apropriação daquele
espaço, onde pedestres ganharam protagonismo. Com o passar dos anos, a região
recebeu projetos como o Parque da Rua do Porto e até uma garagem de barcos para
propiciar práticas esportivas e recreativas junto ao lago existente. Na outra
margem, o Engenho Central foi tombado em 1989 e, em 1992, foi inaugurada a
Ponte Pênsil para conectar os dois lados.
Em 2001 foi criado o Projeto Beira-Rio, um programa de requalificação
ambiental e urbanística com foco na relação rio/cidade. A partir de um profundo
diagnóstico, foram desenvolvidas três etapas de trabalho entre 2003 e 2012 que
geraram intervenções em toda a orla esquerda do Piracicaba compreendida entre a
Rua do Porto e a Ponte do Mirante - conjunto que passou a ser conhecido como
Parque Beira-Rio. Para completar, em 2014 houve um concurso de projetos de
arquitetura para revitalização do Parque do Mirante, celebrando o primeiro dos
parques implantados na cidade (vencido pelo Grupo Garoa).
Agora, a cidade passa por mais um momento de fortalecimento de sua
relação com o rio, com um Plano Diretor para o território da Orla Fluvial do
Rio Piracicaba no trecho central da cidade. O trabalho, conduzido pelo
escritório Stuchi & Leite Projetos, visa a estabelecer um sistema integrado
e coeso de parques lineares com a inserção de novos programas e equipamentos
nos parques existentes, além da requalificação do Parque do Trabalhador e da
conquista de um novo parque, no trecho da Nova Avenida Renato Wagner.
Entre as ações estratégicas previstas no Plano Diretor, destaca-se a
inserção, ao longo de todo o trecho de orla em questão, de programas públicos
(lazer, decks, ginástica, esportes), equipamentos públicos (sanitários), totens
de bases policiais e informações turísticas, módulos de programas comerciais
(alimentação), equipamentos de porte (Engenho, Aquário, Planetário, Teatro,
Boys renovada, Museus) e áreas potenciais junto à iniciativa privada, através
PPPs.
O novo parque junto à Nova Avenida Renato Wagner foi projetado para
aproximar ainda mais cidadãos e águas: deques de madeira e pistas de caminhada
e ciclismo complementam o desenho de duas praças em meio ao bosque, a Praça das
Águas e a Topologias Lúdicas. A avenida existente será reconfigurada: em seu leito
carroçável mais próximo ao rio, carros darão lugar a calçadões e ciclovias; na
caixa viária restante, será privilegiado o transporte público. As calçadas
lindeiras serão aumentadas e todos os pisos propostos serão permeáveis, uma
forma de assegurar a desejável microdrenagem. Todo o térreo do Lar dos
Velhinhos será ativado com programas comerciais, acompanhando o instrumento
urbanístico previsto em Planos Diretores de várias cidades, inclusive no de
Piracicaba, revisto em 2013.
GOIÂNIA, GO
Se Goiânia detém, merecidamente, o título de cidade mais verde do País,
por contar com o maior número de árvores plantadas em vias públicas (950 mil) e
a incrível marca de 94 m² de área verde por habitante (quase oito vezes mais do
que o mínimo recomendado pela ONU), ela está longe de ser considerada uma
cidade azul. Isso porque os 85 cursos d'água presentes dentro de seu perímetro
estão contaminados e apresentam disfunções em relação à qualidade da água e às
características hidrológicas e morfológicas de seu leito e sua várzea.
Um ambicioso projeto pretende ajudar a reverter esse quadro de maneira
definitiva. Trata-se do Programa Urbano Ambiental Macambira Anicuns (Puama),
criado em 2003 para recuperar a microbacia Macambira Anicuns, que drena 70% da
área urbana de Goiânia e deságua no Rio Meia Ponte, responsável por grande
parte do abastecimento hídrico da cidade.
O Programa conta com um parque linear de 26,5 km de extensão que, quando
concluído, deverá ser o maior parque linear do Brasil e, talvez, da América do
Sul, além de dois parques ambientais urbanos que visam à recuperação e proteção
do sistema fluvial. O trabalho foi desenvolvido a várias mãos pelo Consórcio
Reencontro com as Águas, composto por Rosa Grena Kliass, Barbieri Gorski,
GrupoQuatro, Basitec e Hidroconsult.
Os parques preservam a vegetação existente e propõem extensas áreas de
recomposição arbórea, e têm seu perímetro demarcado por um par de vias
paralelas para pedestres e ciclistas - um dos maiores desafios de implantação
está, de fato, na consolidação do perímetro, já que ela depende de
desapropriações e remoções de edificações construídas por moradores de variados
estratos sociais.
Nos espaços fora das Áreas de Preservação Permanente (APP) - faixas de
30 m ao longo das margens dos cursos d'água e de 100 m ao redor das nascentes -
foram projetados Parques de Vizinhança, Núcleos Socioambientais e uma
infinidade de núcleos de estar com equipamentos públicos. Além dos parques,
estão previstos projetos de infraestrutura de drenagem, transposição dos corpos
d'água e melhoria de leitos carroçáveis, além de regularização do uso do solo e
soluções habitacionais adequadas.
Estão em obras o Parque Ambiental Urbano Macambira, que abriga as
nascentes do córrego de mesmo nome, e o primeiro dos 11 setores que compõe o
parque linear - ambos devem ser entregues este ano.
MEDELLÍN, COLÔMBIA
A colombiana Medellín reafirma seu pioneirismo em questões urbanas na
América Latina ao se comprometer com a recuperação de seu caudaloso rio. O
projeto, do Latitud Taller de Arquitectura y Ciudad, foi selecionado em um
concurso internacional e deve integrar a cidade a seu âmbito fluvial, além de
consolidar um corredor biótico de envergadura metropolitana na forma de um
parque ambiental, cultural e esportivo.
Medellín fica entre duas cadeias de montanhas paralelas e seu rio
acompanha a conformação do vale como um eixo de simetria quase perfeito -
curiosamente, até o número de pessoas que vive de cada lado é parecido, cerca
de 1,2 milhão. Há décadas, foi construída uma rodovia nacional que cruza a
cidade ocupando justamente as duas margens do rio; todas as pontes instaladas
foram destinadas a veículos e poucos são os pedestres que se aventuram a
atravessá-las. O resultado é uma barreira física e psicológica que divide
Medellín, literalmente, em duas porções, leste e oeste.
O projeto para o Parque do Río Medellín é uma síntese de questões
referentes à ecologia, mobilidade e urbanidade. Com 17 km, deve estruturar a
rede de áreas verdes da cidade e incrementar a hoje baixa oferta de espaços públicos
na metrópole. O elaborado plano de plantio de espécies nativas foi organizado
em trechos que respondem às especificidades dos 52 afluentes que deságuam no
rio dentro do perímetro urbano, originando um potente corredor verde. Assim, o
rio Medellín irá criar condições de conectividade para o tecido biótico do
vale, articulando zonas de vegetação como as montanhas, os córregos, o Jardim
Botânico, as universidades e demais vazios urbanos.
As rodovias existentes serão mantidas e até ampliadas, mas enterradas em
pequenos trechos que, somados, devem chegar a 6 km. A ideia é aproveitar esses
espaços para costurar, em nível, os dois lados da cidade, instaurando a
mobilidade para pedestres e ciclistas - ao longo do restante do rio, serão
criadas passarelas para esses mesmos usuários. O uso do transporte público será
incentivado e estão previstas duas novas estações de metrô.
Finalmente, o parque traz a oportunidade de tecer uma rede de espaços
públicos que ajude a construir uma forte unidade territorial. Uma via de
pedestres deverá percorrer todo o eixo fluvial, conectando novas áreas de
encontro e permanência dispostas ao longo do rio.
O Parque do Rio Medellín, com sua ambiciosa missão, será construído em
etapas, associando capital público e privado, até 2050. O projeto piloto abarca
700 m em uma margem e 1.000 m na outra e já estão em obras no bairro
residencial Conquistadores.
POLÍTICA E
SOCIEDADE CIVIL
Os projetos de parques lineares em Piracicaba, Goiânia e Medellín
mostram a importância do pensamento sistêmico na abordagem de rios e cursos
d'água. Não basta olhar apenas para dentro do perímetro de intervenção direta
de um parque fluvial: é preciso compreender a bacia ou a microbacia
hidrográfica em que se insere como um todo, levando em conta não apenas o sistema
de drenagem, mas fatores ambientais, culturais, sociais, políticos e
econômicos.
Os projetos revelam, ainda, grande cuidado no tocante à inserção urbana,
criando impactos positivos que vão desde a escala regional e metropolitana até
aquela dos bairros adjacentes. Corredores verdes, equipamentos, espaços
públicos e travessias para pedestres e ciclistas são conceitos-chave em todos
eles.
Piracicaba, Goiânia e Medellín não poderiam descortinar um futuro mais
verde não fossem gestos de grande força política. Além de representantes
esclarecidos e corajosos, é preciso comprometimento de órgãos públicos para
manter o foco nos projetos independentemente de questões partidárias. Por fim,
os novos parques lembram que reivindicações populares podem e devem funcionar.
É hora de trazermos de volta o verde a este planeta azul.
MARIANA DE MELO
SIQUEIRA é arquiteta urbanista paisagista formada pela FAUUSP e tem sua
trajetória profissional marcada por três parques: Parque Madrid Río, que ajudou
a desenhar durante os anos em que trabalhou para o escritório holandês West 8;
Parque Macambira Anicuns, quando atuou como coordenadora para o projeto de Rosa
Kliass e Barbieri+Gorski; e Parque Bernardo Sayão, cujo projeto básico acaba de
sair da prancheta na capital federal, em uma parceria com a Escola de
Paisagismo de Brasília
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